Mianmar Miroir (The Corridor) | Art Positions | Art Basel Miami (2006)

Mianmar Miroir (The Corridor)

Sobre a intervenção de Cabelo no Art Positions 2006

Fernando Oliva

2006

Jacques Rancière, em A Partilha do Sensível [1], ao retomar o tema das relações entre a estética e a política, redefine o conceito de “estética” como um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que caracteriza ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. Seria então a partir desse significado de estética que se deveria ser colocada a questão das “práticas estéticas”, no sentido das formas de visibilidade das práticas da arte, do lugar que ocupam, do que “fazem” no que diz respeito ao comum. No entender do pensador francês, as práticas artísticas são “maneiras de fazer” que intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com maneiras de ser e formas de visibilidade.

A ocupação promovida pelo artista brasileiro Cabelo em seu contêiner para o Art Positions (Art Basel Miami Beach 2006) se insere de maneira incisiva neste campo indeterminado de que nos fala Rancière, o lugar dos atos estéticos como configurações da experiência, que ensejam “novos modos de sentir” e induzem a “novas formas da subjetividade política”. Mianmar Miroir – The Corridor elege como uma espécie de tema central, quase um “suporte” para sua experimentação, a célebre fotografia dos gêmeos birmaneses Johnny e Luther Htoo, que em 1997, aos 10 anos de idade foram considerados dotados de poderes espirituais e se tornaram conhecidos em todo o mundo por liderar a guerrilha cristã Exército de Deus, que lutava contra a ditadura na Birmânia (atual Myanmar). Ao deparar, nos jornais, com a poderosa imagem dos irmãos (Johnny com rosto angelical e traços femininos, em contraste com Luther, parcialmente careca e fumando um charuto), Cabelo passou a incorporar em sua obra esse registro fotográfico e a trabalhar sistematicamente para o estilhaçamento de seus significados.

Dentro do contêiner (que possui 12 m de comprimento por 2,5 m de largura), o corpo do espectador é convocado e envolvido pela ocupação de Cabelo, que espalhou dezenas de desenhos, sobre voile e tecido metalizado, aleatoriamente pendurados no teto e colocados sobre o chão. As criações reinserem, em novo contexto estético e político, temas já característicos de sua obra: o espelhamento, a referência ao mundo espiritual (por meio de pequenas figuras sentadas, que mimetizam a imagem de Buda), a manifestação do extraordinário no mundo físico, a vertigem e a alucinação. Nos desenhos vemos, sempre em meio a muita fumaça de cigarros e defumadores, rostos com olhos dupli e triplicados. A ambientação é a de uma selva tropical, e inclui ícones fantásticos como cogumelos agigantados, tartarugas, monstros e outros seres evanescentes.

A instalação pede que o público caminhe entre os desenhos que a compõem, estabelecendo com eles uma relação corporal – ao mesmo tempo em que se dá um diálogo entre momentos de aparição-desaparição, na relação de encontro-desencontro entre o nosso olhar e o do outro. Neste sentido, e ainda pela maneira como a cor se apresenta no espaço, pela forma como a situação instalativa labiríntica convida o olhar, a percepção e o corpo à participação e à deriva, evidencia-se uma das importantes influências de Cabelo, o artista brasileiro Helio Oiticica, particularmente as célebres séries Penetráveis e Parangolés.

O trabalho construtivo com a linguagem, outro elemento constituinte da obra de Cabelo, também se faz presente nesta instalação, por meio de breves versos e frases dispersas pelas superfícies das telas (caso emblemático da aproximação fonética entre “Myanmar” e “Miami”), integrando-se com as figuras dos “budas que fumam” e dos diabólicos “seres da floresta”. Neste sentido, é fundamental a prática de Cabelo como músico e poeta. “First of all, I don’t belong to myself. I am a horse of the world. Poetry’s instrument”, escreve ele. “I am much more ‘what’ than ‘who’.”

Ouvimos ruídos vindos do fundo do contêiner, sonoridades emitidas por um trabalho em vídeo concebido por Cabelo para a situação. O filme mostra as mesmas imagens dos irmãos Htto (um espelhamento dos rostos de Johnny e Luther, verdadeira obsessão para o artista).

A confluência entre os temas suscitados pela presença dos irmãos birmaneses Htoo na paisagem midiática atual (a resistência a um sistema de poder corrompido, a opressão, o messianismo, o caos social, o grotesco e a degeneração), de um lado, e a maneira como o artista realiza a intervenção Mianmar Miroir – The Corridor, de outro, remete ainda aos embates entre ficção e realidade, entre arte e fluxo histórico. Aqui, o instrumental teórico fornecido por Rancière vem novamente ao encontro da obra de Cabelo, particularmente suas reflexões sobre a multiplicação dos discursos denunciando a crise da arte ou sua captação fatal pelo discurso, a generalização do espetáculo ou a morte da imagem como indicações suficientes de que, hoje em dia, é no terreno estético que prossegue uma batalha ontem centrada nas promessas da emancipação e nas ilusões e desilusões da história.

  1. RANCIÈRE, Jacques, “Le partage du sensible: esthétique et politique”, La Fabrique Éditions, Paris, 2000.