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Cabelo

Entre o espírito e o sentido

Paulo Reis

livro Cabelo | 2010

O pensamento só é interessante quando é perigoso.

 

Michel Maffesoli [1]

Desde a antiguidade clássica ao poeta é-lhe imputado o papel de marginal. Expulso da República de Platão, coube-lhe sempre a alcunha de mito intempestivo, perigoso indivíduo capaz de tornar a sociedade vulnerável dado à sua capacidade transgressiva de contaminação. A marginalia é a cidadela refúgio dos poetas, dos visionários e dos loucos, até. Do filósofo Diógenes aos poetas marginais do século XIX – especialmente o saturniano Paul Verlaine e seu pupilo Arthur Rimbaud – a arte da transgressão fora tomada como epíteto de liberdade criativa. Precisamente a tarefa da filosofia no Século XIX, preconizada por Friedrich Nietzsche, toma como modelo o niilismo – moldado num anti-platonismo visceral, injetando-lhe inteligência e liberdade concomitantes. A maquinaria dionisíaca anunciada por Nietzsche é inseparável da transgressão como ato da criação. Ao formular os conceitos de apolíneo e dionisíaco [2], o filósofo concebe que o apolíneo é o princípio de individuação cujo processo de criação se realiza pela experiência na medida que se toma consciência de si mesmo. Apolo é deus que nos dá a imagem sob forma da aparência e o apolíneo é a busca pelo conhecimento através do “conhece-te a ti mesmo”. Dionísio, tal como se dá no culto das bacantes, promove os cortejos orgíacos, os transes coletivos, resultando na experiência de reconciliação do homem com a natureza, propiciando através destas uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade. A experiência dionisíaca é a possibilidade de escapar da divisão, da individualidade e se fundir ao uno, gerando a integração da parte à totalidade.

A força apolínea e a dionisíaca realizam-se plenamente no encontro do homem consigo próprio e com a natureza, ou seja, do Uno Primordial. Deste modo, para intensificar o antagonismo estético entre estas duas forças, Nietzsche passa da sua metaforização estética à oposição psicológica do sonho ou embriaguez, portanto partindo do instinto estético do homem, chegara aos dois princípios metafísicos do mundo e interpreta a própria arte do homem como um acontecimento cósmico. Contudo, num mundo trágico não há redenção, apenas lei inexorável do declínio cujos fenômenos estéticos justificam a existência e o mundo. Em outras palavras, Nietzsche prega a transcendência, mediante a compreensão do espírito da antiga tragédia grega e do seu próprio declínio, procura essencialmente explicar as causas da decadência da cultura ocidental e fornecer-nos uma perspectiva axiológica peculiar que é vector ético da obra. Para Nietzsche, a cultura ocidental é a representação de um estado de decadência inevitável e mesmo irreversível, e que está assente em três pilares fundadores: primeiro a religião e os seus valores que amordaçam ao homem; seguida da moral que cerceia a nossa maneira de ser e de viver – que o filósofo chama de anti-natura; finalmente, a razão, assente na ciência através do estratismo positivista do ser e sua consequente anterejeição do instintivo e do biológico.

Penso na obra do artista Cabelo, imediatamente ocorre-me que este é herdeiro do pensamento nietzschiano. Dotado de poderes ditirâmbicos, Cabelo apela à beleza apolínea da forma mais dionisíaca possível. Suas ações são catarses coletivas, apelam ao ritualistico, a estados de possessão antropofágica dos mitos, bandidos e heróis, de deuses e de semi-deuses que o homem criou para fazer frente ao mistério que é a vida. Não podemos chamar as ações de Cabelo de performance, este anglicismo não dá conta da verdadeira essência que são suas ações onde a música e a palavra servem de base para o artista criar sistemas artísticos integrados (seria sua forma tropical de gesamtkunstwerk?) Cabelo conjuga a poesia surrealista do fluxo inconsciente juntando à violência social presente nas diversas camadas da história humana. Com encantamento – e um falso descontrole – Cabelo perturba a platéia com ações em que usa elementos primordiais como o fogo e água, ainda os animais pré-históricos e a escatologia. A violência aqui evocada é aquilo que Glauber Rocha enunciou como a maior herença cultural do homem. Em Cefalópode Heptópode, ação realizada na mostra “Antártica Artes com a Folha” (1996) Cabelo mostrava já os princípios que norteariam as suas ações pondo um aquário com peixe vivos, fios dentais, chumbos e anzóis, e atores encapuzados e sentados em volta da mesa. Os fios dentais eram costurados nos capuzes à altura dos olhos e tinham azóis e chumbo nas extremidades que se estendiam até o aquário. Na performance, o artista ateia fogo ao aquário usando óleo de soja e álcool, enquanto deambulava em transe pelo espaço a dizer poemas e frases sobre o estatuto do artista. Esta mesma ação seria repetida, em 1997, quando participou da X Documenta de Kassel, numa versão mais complexa. Também ali ateou fogo a tudo aquilo na velha estação da cidade e despertou a ira dos ecologistas alemães. Cabelo riu-se da histeria de um país que tocou fogo em milhões de seres humanos mas preocupava-se com um peixe que chega todos os dias à nossa mesa. “Democracia é engraçada” [Demokratie ist lustig] pensou Joseph Beuys ao ser expulso da universidade. Assim é o mundo, pensaria Cabelo.

Na Arco – Feira de Arte de Madrid (2008), o artista realizou a ação O marujo mascate (da série o Pastor das Sombras) onde empreende uma saga marítima, homenagem a história dos naufrágios, que deu o que falar. “Percorrendo o espaço num carrinho de madeira precário, enfeitado com plásticos de pele de cobra, garrafas de bebida vazias, bonecos e pó de urucum, Cabelo surgia como um pastor que guiava uma improvável procissão, puxada por dois ‘seres’. Assim o artista chamava os homens que, deitados sobre skates de madeira, com os rostos cobertos, vestidos da cintura para baixo com plásticos, moviam-se como cobras perto do chão. Ao longo do caminho, Cabelo ia recitando versos, em inglês, espanhol e português, de uma suposta seita, se dizendo o pastor das sombras. O tom jocoso, a improvisação, os desacertos ao longo do percurso, tudo isso contrastava com o ambiente da feira, que se quer na maior parte das vezes asséptico e carregado de sobriedade. Ao chegar no espaço destinado às perfomances, mais um ‘ser’, um anão, se juntou aos outros dois. Ali então Cabelo prosseguia na sua declamação, e os ‘seres’ iam abrindo um pacote com urucum e pedaços de plástico azul trazendo palavras que formavam uma frase de autoria da escritora espanhola María Zambrano (1904-1996). Ao completar a frase líamos, ‘No hay infierno que no sea la entraña de algún cielo’. E nas ambivalências destes dois mundos prosseguimos, nos afirma Cabelo” [3].

Na ação Marujo Mascate, o retorno, na Foz da língua da Serpente”, realizada na 7ª Bienal do Mercosul (2009), o artista evoca o personagem plural e absurdo que instaura a sua obra. Nela, Cabelo e o anão “cavam a areia do sítio arqueoh!lnãológico que é a região do deserto do absurdo-mar que virou sertão-onde o marujo mascate montou acampamento da La Mer Prospecção e Delivery. Da pequena cabana do cume do mínimo morro partem para o local em busca de tesouros arqueoh!nãológicos, com múmias, de cujos CORpos saem palavras que formam sentenças oraculares, como: MULAS LÍQUIDAS MACACOS DE VIDRO MAMUTES MARMÓREOS MORÉIAS DE MAR FIM. Projeta-se sobre o local a imagem de um grande disco girando, cujo rótulo vermelho se assemelha a um grande sol. O som é uma passagem de La Mer de Debussy. A rotação do disco sofre interferências, ouvem-se ruídos, fica lenta, pára, gira ao contrário… e se mistura ao som do outro sol (será o mesmo?), um meio sol, vermelho, crepuscular, tocando outra passagem de La Mer, também cheia de interferências em sua rotação. Ele está projetado no fim de uma rampa onde está uma carroça com rodas de skate, indo em direção ao sol, cujo cocheiro é um buda. Dos olhos do buda partem fios em cujas extremidades estão gaivotas (gaivolhos); são elas os animais que tracionam a K roça, uma plana e a outra encontra-se em pleno mergulho em direção ao local as escavações…” [4]

Na “instauração” No jardim dos jardins ambulantes (2010) realizado no Carpe Diem Arte e Pesquisa, em Lisboa, o artista convidou três rappers para a sua performance. No histórico jardim do palácio lisboeta distribuiu Budas a andarem sobre precários skates feitos de gavetas, restos de madeira e pedras do local, puxados por andorinhas, caracóis e tartarugas – seres ancentrais que o artista usualmente coloca em seus desenhos e instalações. Através da música (“as bases”, como dizia o artista na noite da performance), da poesia e do fogo, o artista “purificou” o lugar, devolvendo-o a condição de espaço sagrado da criação. Nesta ação – que perturbou a audiência pouco esclarecida sobre a obra do artista e o poder xamânico das suas performances, esboçou-se uma catarse onde misturava-se o medo, a perplexidade e a euforia. Na aparente passividade dos Budas que rodeavam a platéia, Cabelo fez despertar sentidos dionisíacos, friccionando o yin e yang – as forças que regem a vida – numa platéia educada nos valores civilizados do bom comportamento bastava distribuir, nesta noite, o livro O mal-estar da civilização[5] para a ação fazer-se completa. Neste livro, Freud aborda o maior paradoxo humano que foi o de ter criado uma sociedade civilizada, mas que para que tal acontecesse precisou reprimir aos seus instintos violentos. Para Freud, esses impulsos que não podem ser satisfeitos acabam produzindo neuroses e infelicidade. Nada mais ilustrativo do pensamento iconoclasta deste artista regido pelo signo do fogo e da renovação constantes.

Podem variar os suportes – da perfomance às ações, dos desenhos às instalações, dos vídeos aos concertos – a assinatura de Cabelo está sempre presente através de uma alucinante e alucinada ficção composta de seres naturais e espirituais. “A verdade é que os desenhos em pedra fazem os desenhos em tecido parecem estáticos demais, porque a superfície destes últimos é plana, apreensível em uma única visada. A pedra tem seus veios, que o artista explora habilmente, seja para mimetizar as costas de um ser meditativo, seja para se referir ao rosto de uma figura enigmática (divina?), e tem sua forma orgânica que Cabelo aproveita para modelar a torção de uma serpente ou da fumaça de um cigarro de maconha – que por sua vez também pode ser um rio jorrando da cabeça de Shiva. Sim, budismo e hinduísmo, entre outras fontes de energia vital e disposição zen, alimentam a produção do artista até a medula.

As obras mais figurativas da exposição não são aquelas em forma de tartaruga ou de Budas. As peças de maior densidade são as menos trabalhadas escultoricamente, que guardam, em sua forma bruta, os mistérios da narrativa alucinante de Cabelo: quando deparamos com inscrições nas pedras o percurso pela exposição fica mais sincopado. Lemos “idade da pedra”, “idade da luz”, “aqui agora”, “amanhontem”, “daqui pra diantes”. O artista está falando de iluminação ou de trevas? Da transcendência ou da finitude? No vocabulário de Cabelo não parece haver a conjunção “ou”. Pedra e pano e arte e lixo e vamos em frente  [6].

Há na sua obra uma evocação constante a morte e existe uma razão histórica para ela. “Quando eu tinha 12 anos, meu pai foi assassinado. A morte propicia uma transformação. Isso faz parte da minha história. O contato com o inconsciente é muito intenso, sem censura. Deixo vir à tona o feio e o belo. Gosto de tubarões, gosto de animais, e o tubarão evoca beleza e terror simultaneamente. Transformação é outro tema frequente em meu discurso” [7]. Para além das (instaura)ações – diga-se de passagem o termo teria sido criado pelo artista Tunga, uma das suas mais notorias influências ao lado de Helio Oiticica, Artur Barrio, Cildo Meireles, penso também em Joseph Beuys (influencia de qualquer artista que se preze) e Arthur Bispo do Rosário pelo modo como cria uma cosmogonia própria. Para além dos artistas anteriormente citados, Cabelo diz que suas influências – que ele “chama de balaio de gatos” – cabem ainda o jogador Mané Garrincha, o compositor Luís Gonzaga e o poeta Paulo Leminski. As ações de Cabelo acontecem em cabanas, cavernas, espaços labirínticos que ele nos leva a percorrer através de fios (seria o fio vermelho da história do romântico Goethe?).

Seus espaços evocam fantasia e fantasmagoria, alegorias e mitologias, tremor e terror pela forma com que enchem nossos olhos de leveza que parecem flutuar no cosmos, mas também de terror pelo aparente descontrole e possessão. Em Mi casa su casa, um dos muitos labirintos místicos que produz, feita de tecidos desgastados, onde se pode penetrar como estivéssemos num espaço sagrado de revelação. Neste interior – somos levados por Dionísio que “cavalga” no espírito do artista, embriagados pela magia das formas que ilustram o espaço. Nele, Cabelo escreve verdades místicas, poéticas, elegias existenciais sob a forma de aforismos, misturando desenhos de animais, de pessoas, de árvores, de rios, mares, de casas, de deuses, constelações, criando assim uma cosmogonia própria e melancólica que parece anunciar seu desaparecimento. Penso na melancolia como herança comum a autores que pensam como Cabelo. “Não somente Beuys pode ser lido como um verbete sobre alguns modos de atuação atual, mas se quisermos buscar correspondentes, em termos conceituais, nem tanto formais apesar de algumas semelhanças, podemos achar no suiço Thomas Hirschhorn, no inglês Damien Hirst, no suiço Costa Vece, nos brasileiros Cabelo e Marcia X. Estes artistas – como Beuys – operam entre a verdade demandada pela obra e a verdade de cada um. A Anschool de Thomas Hirschhorn é um aprendizado sobre a força transformadora da cultura, e toda sua implicação sociopolítica; essa mesma vertente encontra-se em ações e instalações de Costa Vece, feitas com os mais simples dos materiais. Suas práticas resultam, no entanto, em ambientes que causam reflexão sobre o papel social da arte. A vertente científica em busca da verdade do corpo, o fabuloso organismo gerador de energia traz para arena beuysiana Damien Hirst e sua Theories, models, method, approaches, assumptions, results and findigs, especulando sobre a fisicalidade da morte, que em Beuys está em Wirtschaftswerte (1980). Se a busca do espiritual em Beuys levou-o aos mitos pan germânicos, numa espécie de busca da gesamtkunstwerk, no caboclo feito santo Cabelo, as ações (Cavalo do cavalo) buscam retirar nos ritos afrobrasileiros o xamanismo que da arte possa emanar [8].

Miguel von Hafe Pérez evidencia a partilha de Cabelo “com as vanguardas brasileiras dos anos sessenta e setenta, onde se destacavam Lygia Clark e Hélio Oiticica, e com companheiros de gerações anteriores ainda ativos como Artur Barrio ou Tunga, o mesmo sentimento libertário relativamente às condicionantes de um sistema legitimador das artes hierarquizado e estruturado mediante putativos ‘casos de sucesso’ comerciais ou institucionais. Abstendo-se das visões utópicas que clamavam o fim do ‘cubo branco’, ele sabe que é no trânsito entre a rua e o museu que melhor pode comunicar e, nesse sentido, apelar a experiências estéticas enquanto mapeamentos sensoriais do quotidiano traduzidos em obras de arte mais ou menos efêmeras.

A ideia de trânsito, de viagem, de mobilidade caleidoscópica entre formas de expressão distintas radica no desejo que este artista privilegia de fazer emergir um ambiente onde espaço e tempo confluam a partir de coordenadas improváveis: das referências ao caos criativo das construções improvisadas das favelas brasileiras à apropriação erudita de poemas de Baudelaire em composições musicais da sua banda que cruza o rock, o funk e a música popular brasileira, das reminiscências do seu trabalho como criador de minhocas, que estarão na origem dos ‘erictônios’, seres rastejantes encapuzados e envoltos, das cinta para baixo, em caudas desmesuradas de plástico negro, do desenho fluído e solar à poesia improvisada, tudo se funde num passado-presente perpétuo, que é o tempo da fruição, o tempo da participação.

O ambiente criado por Cabelo neste cubo branco não representa: ele convida à imersão numa realidade-outra. Com raras exceções, penetra-se aí num universo sombrio, crepuscular e visceral, onde o orgânico e o informe se ramificam em segmentos diferenciados: desde imagens de um vídeo obtidas a partir do contacto de fungicidas com a água, até a presença dos ‘erictônios’, que marcarão a inauguração desta peça, justamente intitulada Imediações de Monte Basura.

Se o espaço se vê desconstruído pela efemeridade das estruturas aí construídas, espécie de habitáculos/casulos erigidos a partir dos materiais mais simples, um elemento impõe a sua presença como figura tutelar e recorrente: a dos pequenos ‘guerreiros’, que Cabelo cria apropriando-se da imagem de um guerreiro infantil de Mianmar (antiga Birmânia). A cara recortada e espelhada deste pequeno guerreiro, que com o seu irmão gêmeo lidera um dos mais temíveis grupos guerrilheiros do seu país, é justaposta ao mais variado tipo de garrafas de bebidas alcoólicas que são ainda envoltas em mantos feitos de plástico. Estes ‘guerreiros’ emergem, então, da lixeira pós-industrial e povoam o espaço com uma presença ameaçadora. E aqui também devemos falar de trânsito de sensações: entre uma espécie de energia xamânica e libertária, e a crueza brutal da realidade que nos rodeia. Porque não se trata aqui de esteticizar a rua ou a pobreza, algo que Hélio Oiticica já previra na recepção a alguns dos seus projetos. Antes, percebemos que o salto no abismo é uma incógnita. Tanto para o espectador como para o artista. Desse salto Cabelo retira a possibilidade de uma arte indiferente a categorizações, onde mais do que encontrar ‘soluções’ é no processo que, tal como o arqueólogo, este artista vai pacientemente escavando na memória de uma arte primordial onde o verbo e a ação se confundem num contínuo inebriante.

Mas a vida não é assim. Ou será?” [9]

Em Mianmar Miroir (the corridor), “uma instalação labiríntica que nos atira para o aspecto trágico da existência contemporânea, Cabelo cria um penetrável feito de suportes mais variados como a fotografia, o desenho e o vídeo, obrigando-nos a deambular pelo espaço fazendo o corpo torcer-se, bailar, para enfim cruzá-lo. À medida que avançamos nosso corpo é tocado por um conjunto de imagens que grudam ao nosso olhar como uma tatuagem. O ponto de partida para Mianmar Miroir foi uma fotografia publicada nos jornais do mundo inteiro onde apareciam os gêmeos birmaneses, Johnny e Luther Htoo, que aos 12 anos de idade foram considerados dotados de poderes espirituais e se tornaram conhecidos por liderar a guerrilha cristã (Exército de Deus), lutando contra a ditadura na Birmânia, atual Myanmar. Ao deparar-se nos jornais com a poderosa imagem dos irmãos – Johnny com rosto angelical e traços femininos, em contraste com Luther, feições de adulto, parcialmente careca e a fumar charuto –, Cabelo ficou obcecado pelas possibilidades de criação que aquela imagem lhe suscitava, passando a incorporar na sua obra não só a fotografia, mas sobretudo alguns dos seus significados mais íntimos: a questão do duplo, o efeito espelho, a resistência, o messianismo. Como escreve o artista numa das obras que compõe a instalação: “Aqui é do fim para a frente / É a obra pelo desvio / Espasmos da luz / Pára-raios do Paracleto / Ovo-Bomba / Expande… / Big-Bang / Bang” [10]. Apolo é o deus da beleza, mas também o senhor da guerra. A recusa do apolíneo dá-se sobretudo para nos lembrar que em tempos de guerra somente a arte nos serve de consciência coletiva. Maffesoli diz que “a vida é feita de destruição e de construção. Tampouco o pensamento escapa a essa lógica, pois precisa revelar a inutilidade das análises desses ‘especialistas’ de discurso perfeitamente previsível, cujo conformismo aterrador só tem equivalência em sua ignorância do que é a existência em seu cotidiano.… Aí temos o foco epistemológico e ético de um pensamento forte, em congruência com o seu tempo. E portanto lúcido, estimulante e amoral. Além e aquém da crítica e antes da ação, é preciso saber celebrar o mundo tal como é, pelo que é. E assim esquecer a crítica raivosa dos espíritos infelizes. Não por desprezo (pois sabemos que é preciso economizar esse sentimento), mas pelo simples fato de que é rompendo com a opinião, ainda que categorizada, que podemos pagar tributo à edificação de um pensamento em congruência com seu tempo… Pensar a singular metamorfose da vida em seu desenrolar, promovendo o retorno ou a reatualização do que sempre foi… A oscilação entre o conhecimento e a vida cotidiana, entre o espirito e o sentido” [11], eis o que pretende o artista Cabelo.

  1. MAFFESOLI, Michel, “O ritmo da vida: Variações sobre o imaginário pós-moderno” Tradução Clóvis Marques, editora Record, Rio de Janeiro, 2007
  2. NIETZSCHE, Friedrich, “A origem da tragédia proveniente do espírito da música” Tradução Erwin Theodor, editora Cupulo, São Paulo, 1948
  3. www.cultura.gov.br/brasil_arte_contemporanea/?page_id=328
  4. Escrito do artista sobre a performance
  5. FREUD, Sigmund, “Futuro de uma ilusão/Mal-estar na civilização e outros trabalhos”, editora Imago, São Paulo, 2006
  6. MONACHESI, Juliana, “De pedra e pano”, em BRAVO! Nº 107, Rio de Janeiro, 2006
  7. PRATA, Isabela, em entrevista com o artista (www.galerizmariliarazuk.com.br)
  8. REIS, Paulo; “O último trágico do século XX”, em Dardo Magazine nº 1, Dardo Ds, Santiago de Compostela, 2006
  9. PÉREZ, Miguel von Hafe, “Traficante de emoções, ou o arqueólogo da poesia primeira”, texto folha de sala para Centre d’Art Santa Mònica, Barcelona
  10. REIS, Paulo, “Cabelo/Mianmar Miroir”, texto folha de sala para 3+1 Arte Contemporânea, Lisboa, 2007, (www.3m1arte.com)
  11. MAFFESOLI, Michel, “O ritmo da vida: Variações sobre o imaginário pós-moderno” Tradução Clóvis Marques, editora Record, Rio de Janeiro, 2007