cabecadagua17

Beleza e horror

Transformações de uma viagem poética: uma ordem no delírio

David Barro

livro Cabelo | 2010

“Foi o primeiro animal que vi, quase trinta horas depois de estar na balsa. A barbatana de um tubarão infunde terror porque a gente sabe da voracidade da fera. Mas na verdade, nada parece mais inofensivo do que a barbatana de um tubarão. Não parece algo que faça parte de um animal e, muito menos, de uma fera. É verde e áspera, como a casca de uma árvore. Quando a vi passar beirando a borda, tive a sensação de que teria um sabor fresco e um tanto amargo, como o de uma casca vegetal. Eram mais de cinco da tarde. O mar estava sereno ao entardecer. Outros tubarões foram se aproximando da balsa, pacientemente, e ficaram rondando até que anoiteceu completamente. Não havia mais luzes, mas dava para senti-los rodearem por ali na escuridão, rasgando a superfície tranquila com o fio de suas barbatanas”.

 

Relato de um náufrago, Gabriel García Márquez

 

Não parece haver uma metáfora melhor para descrever a obra de Cabelo do que a figura de um tubarão. A sua simples presença já sugere e evoca um perigo mortal. A intensidade do momento, essa ronda tão suave quão implacável é também uma característica da obra de Cabelo, sempre preocupado com a morte e com a transformação e, de certo modo, com o fragmento decorrente dessa fissura ou cisão que se destila nessa espécie de viagem xamânica que o artista empreende em cada uma de suas ações.

Adorno assinalou esse ponto com especial acuidade: “A mais exigente das artes tende a sobrepor-se à forma como totalidade, até chegar ao fragmentário” [1]. E nesse trânsito em direção ao fragmentário a temporalidade desempenha um papel importante, deixando o tempo em suspenso. As criações de Cabelo incitam à exploração, ao descobrimento e, nesse sentido, são obras que permanecem inacabadas, como se quisessem visualizar a incerteza da vida. Daí que tudo em Cabelo pareça desordenado, porque como defendia Maurice Blanchot, o fragmentário, mais do que a instabilidade (a não fixação), promete a confusão e a desordem [2].

Percebe-se claramente este aspecto nos seus desenhos, onde as frases dançam e as palavras entremesclam-se com imagens incompletas, porque as figuras de Cabelo se desbotam e parecem evaporar-se antes que possamos encontrar-lhes um sentido. Suas obras funcionam, precisamente, quando conseguimos entrar nesse abismo. São imagens esmaecidas: mesmo quando conformada com traços grossos, a figura se extenua, assumindo a mesma leveza das telas coloridas que sustentam a narrativa suspensa do artista. Sua arte tem a textura da meditação e da poesia e por isso, o resultado é suave, frágil, despido, fluído.

Como já assinalamos, o potencial anárquico decorrente da desordem é um dos principais atrativos da obra de Cabelo. A expansão da incerteza que cada ação esconde, gera uma tensão particularmente rica. Como na différance cunhada por Jacques Derrida, esse espaçamento se traduz como um desvio, como aquele gesto efêmero de mudanças contínuas dos parangolés de Hélio Oiticica, que tão bem representam o processo espaço-temporal fragmentário das construções nas favelas, essas que nunca são acabadas e nem parecem consolidar uma forma fixa.

Historicamente, como tem acontecido com artistas como Hélio Oiticica, o que Cabelo pretende é uma espécie de resgate emocional do vivenciado, um estado intransferível capaz de revelar coletivamente a experiência individual. No caso de Cabelo que visa projetar o caótico, as fissuras perceptivas, mesmo as procedentes de certas lógicas, derivam do desvario, em uma atitude gestual próxima à escrita automática surrealista. De que outra maneira é possível descrever cenas como a de um homem sentado em uma cadeira, amordaçado por uma máscara da qual saem fios com olhos nas pontas, que acabam submersos em vasos com peixes e que às vezes explodem em seus aquários? Cabelo advoga sempre pela transformação e pela marginalidade estética como resquício do vernáculo e de sua própria história, conseguindo introduzir o espectador nesse mundo primigênio ou original, misteriosamente desconhecido.

Não é de estranhar, portanto, que seus desenhos, instalações, ações ou performances, como quer que os chamemos, sejam caracterizados pelo convulso e pela compulsão repetitiva, por um meandro sobre determinados gestos e atitudes iconoclastas que conformam a poesia do informe, anárquica e radical, lírica e agônica, espiritual e sensível. O cenário se resolve à maneira de espaço pleno, polissêmico e assim é violado, penetrando a sua realidade incomensurável em busca de sua própria expressão. Entendo que se trata, definitivamente, de um espaço hiperbólico que só pode ser percebido através do estranhamento, de uma espécie de apostasia com forma de processo. Cabelo trabalha a paixão pelo trânsito, partindo do excedido e ilimitado, de um eterno desfazer-se, de um desapego abissal.

De certo modo, as suas transformações me lembram as arquiteturas dos cárceres de Piranesi, descritos por Aldous Huxley como metaphysical prisons [3]. De fato, ambas as realidades têm muito de metafísicas, com muros e gestos que se elevam mais além do pesadelo, de uma ansiedade kafkiana. Para Huxley, os cárceres são variações de um único símbolo “que se dirige à realidade existente nas profundezas físicas e metafísicas da alma humana – à acédia e à confusão, ao pesadelo e ao angst, à incompreensão e ao pânico” [4]. Como em Piranesi, as ações de Cabelo delineiam fugas incompreensíveis que partem de gestos inverossímeis e crispam o todo com fragmentos que configuram uma forma arquitetônica, como é o caso mais evidente em Mi casa, su casa. A beleza e o terror se cruzam e se sobrepõem em uma espécie de transformação interminável, tentadora e penetrável como os mundos de Oiticica ou de Lygia Clark.

Cabelo constrói a sua própria reestruturação vital e a intervenção na realidade vasculhando no escuro, na fissura babélica que deriva em desordem utópica, em excesso que numa brecada incontrolável formaliza-se em sobras. De certo modo, em cada um de seus desenhos ou ações nos deparamos com um lugar fora do lugar, uma realidade que funciona mais como tatuagem, como marca, como rastro ou, mais concretamente, como espelho que cospe diretamente na nossa cara a realidade marginal. Os mundos de Cabelo seriam, então, como as heterotopias que Foucault [5] definiu, divididos pelo espelho: “Penso que entre as utopias e estes posicionamentos absolutamente outros – as heterotopias –, haveria sem dúvida uma espécie de experiência mista, medial, que seria o espelho. O espelho é uma utopia, por ser um lugar sem lugar. No espelho me vejo onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície, estou ali, ali onde não estou, espécie de sombra que devolve minha própria visibilidade, que permite ver-me ali onde estou ausente: a utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o espelho existe de fato e exerce, sobre o lugar que ocupo, uma espécie de efeito-retorno: quando me olho no espelho me descubro ausente no lugar em que estou, pois me vejo ali” [6].

É nesse tipo de espelho que se esboça a ideia de trânsito. Paulo Reis nos lembra essa confluência de tempo e espaço partindo de coordenadas improváveis: das referências ao caos criativo, da apropriação erudita dos poemas de Baudelaire, das composições de rock ou de funk, e mesmo do ritmo brasileiro, quer seja na música quer nas construções improvisadas das favelas [7]. Como nos relatos de Maurice Blanchot a favela abriga um outro tempo, não fictício: o da narração. É o tempo da escrita, como o das ações de Cabelo. O tempo aqui é experienciado. Em Cabelo é o tempo do inaudito e do improvisado, do obscuro e, mais concretamente, da ausência de tempo, do presente sem presença. Efetivamente, a favela, bem como a heterotopia, funciona quando se rompe com o tempo tradicional, como em um cemitério e também, como em uma biblioteca onde o tempo nunca para de amontoar-se, de acumular-se, em um ‘mal de arquivo’ sem fim. É, portanto, uma interrupção da realidade em si, de seu tempo, de seu espaço. No entanto, a guinada não é necessariamente a ruptura da continuidade. Seria mais uma elipse ou essa necessidade contemporânea de acidentar, de transformar em fragmento, em rastro peripatético que rasteja pela superfície de seus desenhos e, literalmente, em algumas de suas ações.

Falamos de deslocamentos, de memórias ou corporalidades tornadas rastro. É o produto do resto que resta, que permanece, que resiste, pois como assinala Derrida “a ruína não está diante de nós, não é nem um espetáculo nem um objeto de amor. É a própria experiência: nem o fragmento abandonado – mas ainda monumental de uma totalidade –, nem sequer, como pensava Benjamin, um tema da cultura barroca. Não é propriamente um tema, pois arruína o tema, a posição, a apresentação ou a representação de qualquer coisa. Ruína: é antes essa memória aberta como um olho ou como o orifício de uma órbita ossuda que nos deixa ver sem mostrar-nos absolutamente nada /do todo [rien du tout]. Para não mostrar-nos absolutamente nada /do todo. ‘Para’ não mostrar nada do todo, é como dizer: porque a ruína não mostra absolutamente nada /do todo pois visa não mostrar absolutamente nada /do todo. Nada da totalidade que não possa se abrir, perfurar ou esgarçar de imediato” [8].

O de Cabelo é um poema perdido que persegue no espectador uma resposta emocional, um questionamento, uma reflexão e uma revisão do entorno, sobre a sua relação com os objetos e com o mundo. Por isto ele nunca constrói obras como respostas concretas, mas dominadas pela ambiguidade, visando obter a maior disparidade de interpretações. É querer dizer o impossível, algo próprio da poesia, que permite questionar a realidade e o que nos rodeia, instigando sentimentos contraditórios no espectador, gerando uma expectativa inicial que resulta posteriormente frustrada.

Cabelo trabalha o lado incompreensível da história. Como em A invenção de Morel de Bioy Casares, os personagens (espectadores) parecem incapazes de compreender a sorte que os acontecimentos lhes defrontam. Assim, o horror ao vácuo declina em um vazio onde os personagens animais sobrevivem desafiando qualquer lógica. Cabelo distancia o relato da razão e, como em Kafka, Melville, Musil, ou em um drible de Garrincha, procura o enigmático, o elogio ao obscuro, que vacila perante um espectador que se depara com altas doses de beleza e de tragédia. Como queria Beckett, nas obras de Cabelo abrimos definitivamente os olhos para a desordem.

Não é de estranhar que ao realizar uma performance em uma feira, como foi o caso de sua ação na feira de ARCO em 2008, ano em que o Brasil participou como país convidado, tomasse uma frase de María Zambrano como base e final de sua criação: “Não há inferno que não seja a entranha de algum céu”. Para Zambrano e acho que também para Cabelo, a história da criatura humana, desde o horror do nascimento, é uma luta entre o desengano e a esperança, entre realidades possíveis e devaneios impossíveis, entre medida e delírio. Por isso, em muitos casos, a razão delira e quando se atinge a embriaguez desse delírio, é preciso despertar outra vez. Para Zambrano, a poesia é uma ordem no delírio e acredito que percorrer um caminho em uma carreta precária, envolta em plásticos de pele de cobra, com garrafas vazias e bonecos, enquanto recita versos ao longo de uma feira de arte, amparado na premissa de ser um pastor das sombras, é que esse delicioso delírio improvisado tem toda a força de uma poesia fora de lugar, que fratura a percepção de quem quiser deixar-se comunicar.

Resta então a dúvida de como qualificar e classificar a obra de Cabelo. Em um texto de 1995, escrito a propósito da exposição homônima “Escultura Carioca”, Ricardo Basbaum apontava que a discussão não estava inserida na categoria “escultura”, mas na de “objeto”, que antes de ser uma categoria de arte, é uma atitude, uma postura do artista diante do que possa significar trabalhar com arte na atualidade [9]. Basbaum mostrava como essa opção implica um estado híbrido que possibilita o aproveitamento de qualquer material ou espaço para compor uma instalação ou dar sentido a uma performance e, até mesmo, a uma pintura ou escultura. O desafio consiste, então, em abordar o fato artístico sem certezas, sem categorias e isto implica uma atitude diversa do artista. Naquela exposição percebíamos uma série de mecanismos de envolvimento do espectador em função de recursos hipnóticos e subliminares que encontraríamos, logo depois, na obra de Cabelo. Não em vão, dois anos mais tarde, ele participava da X Documenta de Kassel, pondo fogo com a mesma naturalidade com que o fazia poucos meses antes (junho de 2010) no espaço Carpe Diem em Lisboa, na performance que intitulou No jardim dos jardins ambulantes.

Naquela “instauração” lisboeta, com esse tipo de purificação do local, despertava-se um erotismo essencial, pelo menos se nos remetermos à concepção de Bataille no tocante ao erótico como violação do eu puro, como conexão com a morte, como se houvesse um laço desenhado entre a vítima e o verdugo: uma experiência de morte, expressa em angústia, que acaba irmanando o executor com o sofrimento animal, como naquela primeira performance Cefalópode heptópode realizada na mostra “Antárctica Arte com a Folha” e que posteriormente repetiria na X Documenta. Cabelo perambulava ao redor do aquário, como um tubarão, enquanto recitava poemas e asseverações sobre o estatuto do artista. As suas obras estabelecem uma ligação erótica com a morte, como na filosofia de Bataille; uma morte que é, paradoxalmente, o aroma da existência.

Ao passearmos como espectadores por peças como Mi casa, su casa, uma espécie de labirinto de telas soltas, desgastadas, com desenhos de aparência improvisada e surrealista, movemo-nos também em um espaço de sedução. Como no texto “O Marujo Mascate”, descendo por galerias bifurcadas, deparamo-nos com seres estranhos. A penetração nesse mundo converte-se em algo sagrado. Entretanto, cores, figuras e uma série de frases nos acolhem e nos convocam, potencializando o nosso envolvimento com a obra. O mesmo acontece em Mianmar Miroir, onde a fotografia, o desenho e o vídeo flertam com a distorção perceptiva. Ou quando nos defrontamos com um de seus desenhos individuais de traço grosso, fluídos como a fumaça de um cigarro, instáveis e brandos como a linguagem dos sonhos. Estas obras de Cabelo também brincam com as margens e os fragmentos, com as desordens e as perversões, até chegarem a um interessante estado de “suspensão”. São como nuvens trágicas, carregadas de pintura e poesia, que sobrevoam o horizonte dos nossos olhares para falar-nos de certa impossibilidade de completar, da dificuldade que permite que sua obra continue sendo tão fresca, porque como acertou Jacques Derrida: “se a torre de Babel tivesse sido concluída, não existiria a arquitetura, pois somente a impossibilidade de terminá-la tornou possível que a arquitetura, assim como muitas outras linguagens, tivessem uma história.” [10]

Os territórios de Cabelo estão em vias de desterrar-se, como se tivessem a possibilidade potencial de pular de um lado a outro, como os funâmbulos. Seguindo sempre uma lógica próxima à de Nietzsche quando indicava que ao avistarmos uma terra inexplorada, com fronteiras não delimitadas por ninguém, encontramos algo mais além de todas as terras e um mundo que destila coisas belas e, ao mesmo tempo, estranhas e pavorosas. Um mundo inapreensível. É como se vagássemos por aquele poema de Paulo Leminski que nos lembra que esta vida é uma viagem e que é uma pena estarmos nela apenas de passagem.

  1. T. W. ADORNO, TEORIA ESTÉTICA, 1970.
  2. MAURICE BLANCHOT, L’ECRITURE DU DESASTRE, GALLIMARD, PARIS, 1980.
  3. ALDOUS HUXLEY: PRISONS, TRIANON PRESS, LONDRES, 1949
  4. IDEM.
  5. MICHEL FOUCAULT, ESPACIOS DIFERENTES EM OBRAS ESENCIALES VOL. III. ESTÉTICA, ÉTICA E HERMENÊUTICA, EDITORIAL PAIDÓS, BARCELONA, 1999.
  6. MICHEL FOUCAULT, DE LOS ESPACIOS OTROS (DES ESPACES AUTRES), CONFERÊNCIA PROFERIDA NO CERCLE DES ÉTUDES ARCHITECTURALS, 14 DE MARÇO DE 1967, PUBLICADA EM ARCHITECTURE, MOUVEMENT, CONTINUITÉ, Nº 5, OUTUBRO DE 1984. TRADUZIDA POR PABLO BLITSTEIN E TADEO LIMA.
  7. PAULO REIS, “CABELO – ENTRE O ESPÍRITO E O SENTIDO”, DARDO XS, SANTIAGO DE COMPOSTELA, 2010.
  8. JACQUES DERRIDA, MÉMOIRE D’AVEUGLE, 1990. TEXTO CRIADO A PROPÓSITO DE UMA EXPOSIÇÃO DE DESENHOS SOBRE CEGOS NO MUSEU DO LOUVRE.
  9. RICARDO BASBAUM, “ESCULTURA CARIOCA – DEBATE”. APRESENTADO NO DEBATE “ESCULTURA CONTEMPORÂNEA”. PAÇO IMPERIAL, RIO DE JANEIRO, 12 DE NOVEMBRO DE 1994. IN: REVISTA ITEM, Nº 1. RIO DE JANEIRO, 1995. (PUBLICADO EM ESPANHOL EM ARTE CONTEMPORÁNEO BRASILEÑO: DOCUMENTOS Y CRÍTICAS, DARDO, SANTIAGO DE COMPOSTELA, 2009).
  10. J. DERRIDA: “LA METÁFORA ARQUITECTÓNICA” EM NO ESCRIBO SIN LUZ ARTIFICIAL, ED. CUATRO, VALLADOLID, 1999.