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A vida é refrão

Biografia fictícia para o catálogo da exposição Cabelo apresenta MC Fininho e DJ Barbante no Baile Funk (Gentil) Carioca

Fred Coelho

catálogo da exposição | 2011

Respeitável público, não é todo dia que conhecemos a história de alguns personagens subterrâneos da cultura carioca. Nesta exposição, Cabelo e a Gentil Carioca apresentam um pouco da vida e obra do inesquecível anti-herói MC Fininho. Fininho, rapaz de bem, corpo fechado, cordão de ouro, nada no bolso ou nas mãos e tênis colorido da moda, é um dos principais articuladores dos graves e das quadras em que nasceram e reinam até hoje os bailes funks da cidade. Foi MC Fininho, ainda em 1983, quem trouxe debaixo do braço, após uma viagem kamikaze aos EUA para embarcar na nave espacial anunciada por George Clinton, o compacto com “Planet Rock”. Era Fininho, moleque-prodígio, quem puxava a fila do Lado b nos primeiros bailes da Villa Lage, berço dos seus camaradas da Pipo’s e, no dia seguinte, almoçava canjica nas rodas de jongo do Morro da Serrinha. Conhecedor de todas as quebradas e rádios comunitárias, Fininho vagou por lares, famílias e equipes de som como um nômade do funk, espalhando a palavra, aprendendo o esperanto das ruas e transformando a sua história e a história da música mundial. Fininho também marcou presença em rádios piratas dos anos oitenta cantando milhares de vezes, a pedidos dos ouvintes, as primeiras versões de funk nacional gravadas com Dj Barbante, além de criar expressões clássicas como “tô bolado” e “não tem caô” e professar os primeiros ensinamentos sobre o Miami Bass das quadras do Alemão à Praça Seca.

Dizem que Fininho não aparece em fotos ou entrevistas desde os chamados arrastões de 1992. Na época, sua imagem ficou marcada nas manchetes de jornais como o líder do bonde que vinha quicando sobre o 474 nervoso, lotadão, com geral cantando a melô da mulher feia. Depois desse incidente que estigmatizou para sempre os funkeiros cariocas, Fininho sumiu no mapa e sua biografia tornou-se obscura. alguns dizem que foi justamente nessa época que Fininho conheceu Cabelo, jovem estudante universitário, agitador cultural que morava em Copacabana e pegava onda na praia com a rapaziada do Pavão. Cabelo conheceu Fininho nas peladas de fim de tarde do verão e a empatia foi imediata. Cantavam Almir Guineto e debatiam sobre qualquer assunto esotérico falando alto e rindo muito. Foi Fininho quem sugeriu a Cabelo o mote de seus primeiros versos e a ideia de fazer música e artes visuais como um sonho possível de se viver. Fininho mostrou a Cabelo que o precário é potente, que pouco pode ser muito, que a massa fervia o caldo nas ruas e que quando o bonde forma, a vida não embarrera.

Em 1999, porém, o silêncio e o exílio de Fininho dentre os bailes e o tráfico de MPCs na rota Detroit-Taquara-Luanda foi interrompido. Com a abertura da CPI do Funk na assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, Fininho foi convocado como um dos principais depoentes. Sua fala era esperada por todas as autoridades e emissoras, pois lendas urbanas atribuíam a ele a chave da história secreta do Funk, desde a fundação da Soul Grand Prix até a concepção do Bagulhão da ZZ discos, desde a dica para o sampler de “Jack Matador” até a sugestão de “Marlboro” como nome artístico de um Dj do Lins Vasconcellos. Sua aparição foi marcada por forte assédio da imprensa, mulheres com crianças nos colos reivindicando exames de paternidade e dançarinos do Clube Renascença prestando solidariedade ao velho amigo e mestre. Seu depoimento foi enigmático, todo feito em língua de congo, TTK e gíria do baile do Chaparral. disse ainda que seu pai usou o parangolé Incorporo a Revolta no MAM-65 e que guardava de memória os elogios das grãs-finas para a paterna performance de vanguarda que rompia com os padrões estéticos defendido pelo livro de Ferreira gullar. “Ali”, disse Fininho, “decidi que minha missão era fazer todos dançarem”. Perguntado se não tinha medo de carregar uma biografia tão pesada e obscura, Fininho disse o seu bordão mais inesquecível, aquele que marca até hoje gerações de intelectuais e moleques de rua: “amigo, não se liga na letra toda porque a vida é refrão!”. Após sua participação bombástica negando-se a entregar os “poliça” que liberavam o corredor no Bandeirantes da Taquara e os “trafica” que bancavam o transporte da galera do cerol, a CPI foi arquivada por falta de provas e pelo clamor público pedindo a liberação dos bailes. Fininho saiu da Assembléia Legislativa e sumiu da vista de todos ao entrar em uma van que ia para Cocotá, Cacuia e Bananal.

Nessa altura, Cabelo já era um artista conhecido e dividia seu ateliê com Fininho, que tinha seu estúdio de baixa tecnologia movida pela falha magnética de Santa Clara Poltergeist e pelos graves estrondosos que o baile do Pavão aplicava nas paredes dos prédios de Copacabana, região do Sáfeganistão. As trocas estéticas entre os dois fizeram com que Cabelo compusesse raps e Fininho resgatasse através de objetos e desenhos as suas raízes da infância nos botecos do Morro do Esqueleto, ouvindo a lenda da Morte do Le Coq e os mais de cem buracos de bala do Cara de Cavalo. passou a estudar teoria da arte e propôs uma revolução filosófica no Funk ao começar a compor suas letras após imersões em semanários de notícias, conversas entre trocadores de ônibus e longos trechos de Catatau, o cartesianismo tropical de Leminski.

O fato é que, contraditoriamente, o século XXI e todo o impacto verbovocovisual que a internet e a cultura digital nos trouxeram foi muito forte para Fininho. profeta do sampler e das montagens, orador do pancadão pós-estruturalista, nosso herói não se adaptou ao espaço de estrelato que antropólogos, musicólogos e filósofos destinavam para ele. Num dia de sol, Fininho disse que ia lavar o carro na rua e sumiu nas sendas e vielas do IAPI de Olaria, último lugar em que testemunhas o avistaram. Dizem alguns que a simbiose entre Fininho e seu parceiro Cabelo foi tão forte que um tornou-se um pouco o outro e vice-versa, não podendo mais ser afirmado onde começava as ideias do artista e terminava as do funkeiro. Após Fininho ter saído de cena, Cabelo criou em exposições no exterior e ao redor do brasil, uma série de personagens para, quem sabe, disfarçar a presença marcante do seu parceiro-alterego em sua vida e obra. Hoje, a pergunta que fica para todos é quem é o criador e quem é a criatura. Pergunta que Cabelo nunca responderá, provando que a influência de Fininho na cultura musical e visual carioca não pode ser contida nem deve ser calada pela crítica e pelos historiadores da arte. Que os funks de Fininho e as obras de Cabelo apresentadas pela primeira vez em conjunto nesta exposição da Gentil Carioca possam elucidar – ou aumentar – esta encruzilhada que ambos nos convidam a cruzar. Porque nunca é demais lembrar que, para Cabelo e Fininho, o papo é reto, a missão é sinistra e o bagulho é neurótico.

Este texto é dedicado a Fausto Fawcett e Silvio Essinger

Frederico Coelho é pesquisador, ensaísta, professor. Escreve e dá aulas sobre cultura brasileira, publicou trabalhos em revistas e jornais como Errática, Margens, grumo, Vogue, Sibila, Minotauro e atual. Lançou os livros Encontros – Tropicália com Sérgio Cohn (azougue), Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado (Civilização brasileira), Livro ou Livro-me: os escritos babilônicos de Hélio oiticica (EduERJ), Coleção Circuito -dJs, com Joca Vidal (Circuito) entre outros. é professor de Literatura da PUC-Rio e assistente de curadoria do MAM-RJ. publica textos esparsos no blog www.objetosimobjetonao.blogspot.com e é dJ da Festa pHunK!